sexta-feira

Sistema de classificação de cor do IBGE

Enquanto na boca floresce a palavra que será, fique de olho no IBGEvra


Alexandre Rodrigues e Felipe Werneck, ao informarem em matéria do Estadão que o sistema de classificação de cor do IBGE está sendo revisado pelo órgão, já adiantaram uma conexão relevante, a saber, que “A decisão foi anunciada no momento em que a proporção de autodeclarados pretos e pardos (49,5%) da população encostou na de autodeclarados brancos (49,7%), segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), de 2006”.
Os técnicos do IBGE, conforme ainda a reportagem de “O Estado de S. Paulo” (29.09.2007, p. A35), vão verificar em 2008 “se as atuais cinco categorias (branca, preta, parda, amarela e indígena) estão adequadas à realidade do País”.
A notícia é preocupante por várias razões, uma delas já adiantada no lead de Rodrigues e Werneck. O “momento” é de expansão da consciência negra, quando na boca daquele(a) que se declara ao recenseador floresce a palavra que será, lembrando aqui um poema de Mário de Andrade.
Em minha opinião acerta quem enxerga nas anunciadas mudanças de critério marcas da pressão anticotas, cujos representantes não têm o menor pudor em declarar que “O Brasil não tem cor. Tem todo um mosaico de combinações possíveis”. (A frase é de Carlos Lessa.)
Essas combinações se dão sempre em prejuízo da identidade negra – no momento em que se amplia a noção de afro-pertencimento e cresce o engajamento numa prática política que já não aceita a mutilação da dimensão racial. É preciso acentuar ainda que a identidade branca foi sempre resguardada nessas “combinações”. Ela é a identidade que se confunde com a do poder político, econômico e ideológico. A valorização da mestiçagem e suas “combinações” é, afinal, uma das expressões do arraigado sentimento antinegro das elites.
Uma outra razão de preocupação diz respeito ao histórico nada tranqüilizador do IBGE, quando o assunto é a cor da população. A PNAD mesmo, só para ficarmos em um exemplo, já ignorou a cor dos entrevistados. A introdução do quesito cor se deu a partir de 1988, sob forte pressão. Quem poderia falar de racismo se a cor/raça não estava presente nas pesquisas amostrais? E a construção de indicadores, para a elaboração de políticas públicas, tomaria como referência qual base de dados?
O outro lado disso tudo nós poderíamos chamar de Síndrome do Chinaglia, que se manifesta nos dias que se seguem à divulgação de indicadores sociais e econômicos com a variável cor/raça. A síntese divulgada na semana passada pelo IBGE dos dados colhidos na última PNAD reiterou a informação, por exemplo, acerca da remuneração inferior de “pretos” e “pardos” em relação a “brancos” com a mesma educação.
O estado mórbido que alcança formadores de opinião, partidos políticos e chefes de governos em todos os níveis pode ser resumido na frase: Quem se importa mesmo com isso? Isso, o racismo, não existe e essas associações da PNAD entre cor e remuneração não passam de fantasias estatísticas, sem nenhuma relação com práticas sociais concretas, opressivas e desumanizadoras. Precisamos rever esses critérios aí, eles dizem.
Há os que fingem admitir alguma realidade nos dados da pesquisa que, é bom que se diga, apenas vislumbra as desigualdades e a subordinação racial, mas também são dominados pela inércia e dedicam-se à contemplação perversa. Na verdade, deixam-se conduzir pela ilusão de que o racismo, deixado em paz, se desmancha no ar. Essa inércia é, no fundo, resistência à mudança e traduz mesmo a confiança que depositam na reprodução infinita do modelo de opressão racial vigente entre nós e que os beneficia de vários modos.
No entanto, como dizia o Galileu de Brecht, as pesquisas (uma conquista política) vêm revelando desde a passagem dos anos oitenta para os noventa que “na minha boca floresce/a palavra que será”.

Edson Lopes Cardoso.
colaborador