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Um centro dedicado à pesquisa dos negros

EM SALVADOR existe uma instituição universitária que, há 45 anos, realiza pesquisas sobre as comunidades negras em nosso país, assim como suas origens na África. Trata-se do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), da Universidade Federal da Bahia. Localizado no principal logradouro do Pelourinho, ele mantém um profundo relacionamento com os baianos, pois se dedica a estudar a vida, o sofrimento e as lutas dos escravos e de seus descendentes, vale dizer, de quase 80% da população do Estado.

Para recolher as lições desse núcleo acadêmico, entrevistamos o antropólogo Jocélio Teles, seu atual diretor, que rememorou conosco os trabalhos de pesquisadores que há várias décadas contribuem para desvendar a trajetória de uma população simultaneamente oprimida pela desigualdade social e pelos preconceitos raciais.
A estrutura e o trabalho do CEAO
Revista Afro Bahia - Professor, o que é o Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia? Qual é sua estrutura?
Jocélio Teles - O CEAO é um órgão suplementar da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Foi criado em 1959 pelo professor George Agostinho da Silva e, inicialmente, era ligado à reitoria da Universidade. Ou seja, não tinha, como hoje, autonomia administrativa e acadêmica. Nossas atividades estão voltadas para cursos de graduação e de pós-graduação. Nele atuam professores do Departamento de História - João José Reis, que é editor da revista Afro-Ásia e Valdemir Zamparoni, coeditor dessa revista - e professores do Departamento de Antropologia, Lívio Sansone, Jéferson Bacelar e eu.
Não temos um quadro de pesquisadores fora do âmbito da UFBA. Todavia, fazemos convênios com diversas universidades estrangeiras, algumas norte-americanas, e também com a Universidade de Ilê Ifé, da Nigéria. Com esses convênios recebemos pesquisadores, que passam aqui um determinado período, recebendo apoio logístico - biblioteca, participação em discussões e seminários etc.
Como exemplo, o professor Lívio Sansone, que coordena um projeto chamado Fábrica de Idéias, conta com o apoio da Fundação Sephis, da Holanda, e da Fundação Ford. Esse patrocínio tem sido fundamental porque, em cada ano, entre o mês de junho e agosto, selecionamos cerca de quarenta pós-graduandos, do Brasil e do exterior, para cursos sobre relações sociais e a identidade negra, numa pesquisa comparativa. Temos mestrandos e doutorandos de várias universidades brasileiras - como USP, Unicamp, UFRJ, Universidade Federal do Pará etc. - e também de países como Angola, Moçambique, Guiné Bissau. No ano passado, recebemos um aluno da Argentina e outro da Itália. No período de cinco semanas, os estudantes têm aulas compactadas sobre essa temática.
Além disso, na Fábrica de Idéias oferecemos cursos e seminários com professores visitantes. Nossas prioridades são os professores de universidades do chamado Terceiro Mundo. Infelizmente, temos recebido poucos profissionais de países como Índia, Indonésia ou mesmo da África, se comparados com os que vêm de países do Norte. Esses professores permanecem aqui uma semana e apresentam suas pesquisas, que normalmente giram em torno da temática racial ou nacional. Entendemos que essa é uma forma de incentivarmos o diálogo Sul-Sul.
O relacionamento internacional
O CEAO foi criado dentro da contexto da "guerra-fria" e o projeto era de que, com a política externa independente, lançada pelo presidente Jânio Quadros, o Brasil tivesse um papel de liderança dentro desse eixo, envolvendo Índia, Egito, Nigéria, China e o nosso país. Observamos isso ao longo desses 45 anos e o papel que o Centro teve nesse processo foi muito gratificante. É curioso que, no momento, essa atividade sirva como apoio à política externa do presidente Lula.
Revista Afro Bahia- Na USP há muitos africanos nos cursos tradicionais. Na UFBA há bolsas para esses estudantes?
Jocélio Teles - Assim como as outras universidades, a UFBA recebe estudantes do continente africano, através da bolsa "Estudante Convênio". Todos os anos eles vêm para diversos cursos, como Medicina, Administração, Arquitetura, Ciências Sociais etc. Além disso, temos um convênio com a Universidade de Ilê Ifé, que possibilita a vinda de um doutorando para estudar no Instituto de Letras da UFBA.
Temos um curso de língua e civilização iorubá, aqui no Centro. Em razão da tradição afro-religiosa na Bahia, é o curso de extensão mais procurado, tanto por universitários como por pessoas sem formação acadêmica, e muitas vezes por interessados que nem terminaram o ensino fundamental. Em média, passam por ele, semestralmente, sessenta alunos. Há também o oferecimento de cursos de língua banto e de língua e civilização árabe, que são menos procurados.
Revista Afro Bahia- Continua sendo realizado o projeto de enviar pesquisadores para a África?
Jocélio Teles - Não. Naquele período houve uma política de estímulo do Itamaraty, por meio da concessão de bolsas e de financiamentos. Posteriormente, o Ministério das Relações Exteriores deixou de exercer esse papel. Todavia, esperamos retomar esse caminho, pois desejamos formar jovens que conheçam a África. Queremos também a vinda de pesquisadores africanos. É claro que para o estabelecimento desse intercâmbio com a África, no nível da pós-graduação, é necessário o apoio da Capes e do CNPq. Pois não é suficiente que isso aconteça só em relação aos EUA e à Europa.
Pesquisas sobre a discriminação racial.

Revista Afro Bahia - Quais foram as principais pesquisas realizadas recentemente e quais são os projetos mais importantes do CEAO?

Jocélio Teles - O professor Valdemir Zamparoni trabalha com Moçambique e o professor João José Reis produziu aquele belo livro sobre a revolta dos malês. Estamos agora preparando um livro sobre a repressão aos candomblés no século XIX, com uma documentação policial e também jornalística. O professor Jeferson Bacelar, na elaboração de sua tese de doutorado, pesquisou a trajetória de um ator negro chamado Mário Gusmão, muito conhecido no período do Cinema Novo. No CEAO há uma orientação para os alunos de pós-graduação em ciências sociais pesquisarem o preconceito racial.
Faremos, ainda, no segundo semestre deste ano, um curso de especialização em estudos etno-raciais e africanos, em pós-graduação. Há uma grande demanda em torno desse tema, pois ainda não há um curso desse porte no país. E essa demanda foi intensificada pela lei nº 10.639, sancionada pelo presidente Lula, em que consta a obrigatoriedade de os currículos escolares apresentarem a temática da história e da cultura afro-brasileiras.
A questão das cotas nas universidades.

Revista Afro Bahia- Já há opinião majoritária na UFBA sobre a questão das cotas para o ingresso na universidade?

Jocélio Teles - Faço parte do grupo de trabalho, instituído pela reitoria, para a proposição, ao Conselho de Ensino e Pesquisa, de uma política de ação afirmativa na UFBA. O problema de cotas está incluso nessa discussão. Nesse grupo de trabalho - em que participam professores, alunos e o corpo de servidores - o indicativo é a adoção de uma política de ação afirmativa, não só para negros, mas também para índios.
Estamos examinando como essa política pode ser efetivada na preparação para o vestibular, no ingresso na universidade, na permanência, e no que chamamos de pós-permanência, ou seja, na pós-graduação, ou até mesmo para a atuação no mundo fora da universidade. Provavelmente em março essa proposta será apresentada ao Conselho.

Revista Afro Bahia - O sr. tem dados do vestibular sobre o ingresso de afro-descendentes na UFBA?

Jocélio Teles - Temos dados do vestibular de 2001. Nele, havia 51% de pretos e pardos. Esse número parece ser muito positivo, mas quando se vê a distribuição nos cursos da UFBA, aí a realidade é dramática. Por exemplo, em cursos de menor concorrência, os pretos e pardos têm uma representação acima de 40% - Biblioteconomia: 61,67%; Física (noturno): 72,5%; Geologia: 62%; Química: 52,5%; Matemática: 50%; Estatística: 57,5%; Enfermagem: 46,3%.Em cursos de maior concorrência e prestígio, há uma inversão - Direito, Odontologia e Arquitetura: 22,5%; Medicina: 28,8%; Comunicação: 15%. Assim, os negros estão sub-representados na universidade e os brancos estão sobre-representados, já que estes representam apenas 20% da população, em oposição àqueles que são mais de 78% da população da Bahia e de Salvador.

Discriminação contra os brancos?

Revista Afro Bahia- Qual é a designação mais usada aqui em relação aos que não são brancos?

Jocélio Teles - Há uma etiqueta das relações sociais no Brasil, que deve ser vista levando em conta as diversas formas de classificação. Há a do IBGE: branco, preto, pardo, amarelo e indígena; temos a classificação do cotidiano: preto, mulato, marrom, cor de disco etc.; outros usam a designação bipolar do movimento negro: brancos e negros (semelhante à dos EUA); ademais, há a classificação do mundo acadêmico, muito próxima àquela do movimento negro, ou seja, pretos e pardos são vistos como negros, porque a posição deles na estrutura hierárquica brasileira é diferente daquela dos brancos.
Acredito que as terminologias preto e negro são pertinentes na etiqueta das relações sociais para os grupos sociais que as utilizam. Por exemplo: tornou-se politicamente incorreto falar-se preto a partir do ressurgimento dos movimentos negros, principalmente na Bahia, na segunda metade da década de 1970. A palavra negro tornou-se uma reivindicação de orgulho e preto caiu em desuso. É óbvio que a palavra preto continua sendo usada, mas a carga política positiva recai na palavra negro.

As ações afirmativas
Revista Afro Bahia - O sr. não sente que existe também um sentimento oposto, ou seja, de discriminação contra o branco? Por exemplo, o bloco Ilê Ayê não aceita pessoas de cor mais clara.

Jocélio Teles - Temos de entender que, pela própria constituição desses grupos, eles foram totalmente marginalizados, como o Ilê Ayê que, quando desfilou, recebeu ataques violentos do jornal A Tarde. A forma como esses grupos, em resposta ao preconceito racial, criaram sua identidade, advém de uma identidade cristalizada com base no discurso racial. Lembro-me de uma frase de Sartre quando afirmava que os judeus foram criados pelo anti-semitismo.
Enfim, é um racismo anti-racismo. Ou, como falamos, é um tipo de racialismo. O campo das relações raciais é o campo da política, do confronto e da distinção. Não percebo como preconceito racial o fato de um grupo considerado marginal - e a história negra é história da marginalização no país - reagir criando espaços de racialização. O Ilê deverá continuar décadas e décadas com essa auto-afirmação, porque se o Ilê perder o referencial racialista, ele perde sua identidade, o orgulho negro dos anos de 1970.

revista Afro Bahia - Como o sr. vê o apoio aos empreendedores negros, ou seja, a implantação de medidas afirmativas no sentido de estimular um desenvolvimento econômico de empresas de propriedade de afro-descendentes?
Jocélio Teles - Nos últimos tempos, surgiu uma nova dinâmica na sociedade brasileira em relação à questão racial. Se o negro era pensado como objeto, a partir das décadas de 1960 e 1970 passou a ser pensado como fabricador de uma política cultural voltada para o desenvolvimento turístico da Bahia. A dinâmica tem impulsionado ações governamentais nesse sentido. É uma grande novidade, principalmente a partir da Conferência de Durban, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, quando começou a sinalização das ações afirmativas no Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Contudo, o dado mais relevante é que essas políticas oficiais não surgem do nada, pois atendem a uma demanda que se apresenta. Hoje temos dezenas de organizações não-governamentais fazendo políticas de ação afirmativa com apoio federal ou de instituições norte-americanas e européias. Então, essa demanda tem a ver com uma conjuntura internacional que, depois da Conferência de Durban, provocou no Brasil a necessidade de promover políticas de ação afirmativa para a população negra e indígena.
E não deixa de ser surpreendente a própria instituição de cotas em algumas universidades e a discussão de como serão implementadas em outras instituições as políticas compensatórias.

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